Polifonias Insulares
Afirmar a originalidade da Literatura de São Tomé e Príncipe como sistema com um lugar próprio entre as literaturas dos países de língua oficial portuguesa é, antes de mais, o objectivo principal do livro Polifonias Insulares que Inocência Mata acaba de publicar.
Podendo considerar-se como o segundo volume da obra Diálogo com as Ilhas: sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe (1998), este conjunto de dezena e meia de ensaios cumpre os mesmos objectivos, dando a conhecer ainda a produção cultural e literária são-tomense normalmente tida na área dos estudos literários de língua portuguesa como escassa.
Primeiro que tudo há que realçar uma grande qualidade deste livro: o extremo cuidado na utilização das palavras, o rigor que passa pelo exercício intencionalmente consciente e deliberado de quem sabe o valor de cada palavra assim como o seu sentido semântico, conferindo, portanto, uma credibilização acrescentada ao discurso que vai desenvolvendo, sem, no entanto, apresentar critérios absolutos, inimigos principais do debate cultural que se impõe cada vez mais.
Por isso é que talvez seja preciso levar realmente a sério as asserções que a autora, actualmente docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como investigadora de literaturas africanas de língua portuguesa, vai expendendo ao longo do livro, pelo que apresentam como proposta para a solução dos vários problemas colocados pela existência de outros falares para além do português.
Inocência Mata é nesta questão bastante peremptória: «O português tem de ser ensinado (em São Tomé e Príncipe) também como língua segunda, apesar de ser, também, a expressão de um segmento da identidade cultural são-tomense.» Porque, «Se a língua portuguesa é um dos veículos (e não apenas o instrumento) de desenvolvimento e de abertura com o mundo exterior, as línguas crioulas são expressão de uma identidade cultural específica (que não deve tornar-se apenas folclórica).» Na verdade, «há que ter em conta as exigências da sociedade moderna concernentes aos direitos linguísticos das minorias, ou seja, no caso, dos falantes das línguas minoritárias (qualitativamente falando), o angolar, o lunguyé e o crioulo cabo-verdiano.»
Assinalando que o lugar dos são-tomenses no processo de afirmação nacionalista da África colonizada por Portugal sempre foi dos mais proeminentes: nas associações cívicas e culturais, na defesa dos direitos das populações, nas reivindicações de cariz político, nas redacções de jornais, nas profissões liberais, Inocência Mata evoca as referências a tal facto feitas pelos poetas angolanos Mário António e Mário Pinto de Andrade, que salientaram o destaque dos são-tomenses na aventura da escrita jornalística e literária assim como na movimentação que levou ao aparecimento do “discurso protonacionalista”, na concertação da “acção protestatária” e na génese da ideologia nacionalista nas colónias portuguesas de África.
A poesia foi a forma privilegiada de expressão literária de São Tomé e Príncipe, fenómeno que ainda se verifica hoje, mais de sessenta anos depois da publicação da obra que ficou como o marco da modernidade literária são-tomense, Ilha do Nome Santo (1942), de Francisco José Tenreiro, livro que inclui o poema Canção do mestiço, segundo Inocência Mata, «uma das mais assertivas e celebrativas expressões da identidade insular do homem são-tomense, cuja natureza mestiça é sentida não como um anátema (…) mas como uma mais valia: (…) Mestiço! /E tenho no peito uma alma grande / Uma alma feita de adição /como 1+1 são 2.»
Segundo a autora, se foi com Marcelo da Veiga que se opera a resolução da diferença que tanto Caetano Costa Alegre quanto Herculano Levy não empreenderam, a inscrição de uma escrita num projecto claramente nacionalista dá-se porém com Francisco José Tenreiro, considerado justamente como o maior poeta da crioulidade são-tomense, acompanhado principalmente por Tomás Medeiros, Maria Manuela Margarido e Alda Espírito Santo, os quais, em grupo, podem ser considerados como a geração dos fundadores do sistema, no significado de uma geração literária, podendo-se até «reconhecer como o corpus fundador da são-tomensidade literária.» E prossegue: «Eles vincularam «a sua poesia a uma ideologia estética que tanto afirmava uma identidade cultural como realizava um discurso de combate social, anticolonial, denunciador da exploração colonial, da precariedade socioeconómica devida ao sistema da monocultura (do cacau e do café), do regime do contrato e do drama dos contratados desenraizados e obrigados a ficar numa terra para a qual foram levados à força.»
Conforme diz José Cassandra no Posfácio, «Inocência Mata tem promovido e lançado, nas suas viagens literárias, expectativas, dúvidas e ironia céptica, ao mesmo tempo que dá a conhecer, numa perspectiva crítica e analítica e não redutora, e anormalmente disciplinar ou especializada, os contornos e enquadramento das obras de autores como Manuela Margarido, Aíto Bonfim, Conceição Lima e Sacramento Neto e outros que, não sendo são-tomenses, escolheram as ilhas como seu lugar de gestação literária mantendo, assim, um diálogo com a cultura e a sociedade são-tomenses: Otilina Silva, Pedro Rosa Mendes, Paulo Ramalho.»
Tendo começado por debruçar-se especialmente sobre algumas tradições etnoculturais da ilha do Príncipe, nomeadamente o celebrado Tchiloli e o Auto de Floripes, Inocência Mata, se bem que não sistemicamente, acaba depois por fazer o roteiro da actualidade literária são-tomense, dando-nos uma panorâmica dinâmica e quase exaustiva do que se publicou ali nas últimas décadas, especialmente o período a seguir ao pousio literário que ocorreu logo a seguir à independência.
Assim, desde Fernando Macedo, com o seu teatro e um belíssimo texto, Anguéné, a Frederico Gustavo dos Anjos e a Aíto Bonfim, não esquece as obras de Maria Olinda Beja, Francisco da Costa Alegre e Amadeu Quintas da Graça, realçando porém, no contexto do discurso da identidade, a poetisa Conceição Lima, pela conciliação do labor poético com a eficácia extratextual, e a particularidade de Viana de Almeida, autor de Maiá Poçón, como o primeiro ficcionista natural de São Tomé, não esquecendo Sum Marky, cuja ficção está próxima da poesia dos “poetas da Casa dos Estudantes do Império”, apesar de ele não poder ser considerado um escritor nacionalista. Referências ainda a Rafael Branco, Albertino Bragança, Sacramento Neto, Manu Barreto, Rufino Espírito Santo, Jerónimo Salvaterra, Lúcio Pinto, assim como a Fernando Reis, Horácio Nogueira e Luís Cajão, escritores portugueses de motivação colonial, sem esquecer os casos mais recentes de portugueses que escreveram sobre São Tomé: Otilina Silva, Pedro Rosa Mendes e Paulo Ramalho.
Só é pena que não fale sobre o incontornável Mário Domingues, mas realmente esta personalidade grande não pode ser considerada como escritor são-tomense, pois só lá nasceu, tendo feito a sua vida toda em Lisboa, embora o seu coração tivesse batido sempre pela África e em especial pela sua ilha natal, o Príncipe.
RODRIGUES VAZ